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Pelos Olhos do Escritor
Escrever para mim é como respirar, eu preciso escrever para continuar vivo.
Textos
Ninguém mexe com Damião
 
O que você precisa saber, pessoa que estar lendo essa história, é que eu não tenho familiaridade com a escrita. E embora nessa história tenhamos um professor de português, dois diretores de escola e um professor de história, achei que eu seria o mais sensato para narrar os fatos ocorrido em 2019, na Escola onde eu moro. Estranho eu morar numa escola? Nem tanto, eu cheguei lá quando a escola ainda estava sendo construída, fiz amizade com os construtores e fui ficando, pois era mesmo um sem teto.
 
Quando a escola já estava pronta, os construtores tiveram que ir embora, natural, né? Mas antes de irem chamaram um dos diretores e me apresentaram a ele, perguntando se ele podia encontrar um lugar onde eu pudesse morar. De imediato, ele disse que não tinha como, mas que eu podia ficar morando na escola até que aparecesse alguma solução para o meu problema. Eu fiquei constrangido com a situação, quem não ficaria, né? O jeito foi aceitar as novas regras de convivência.
 
Agora, o prédio onde eu vivi por quase um ano estava cheio de alunos, professores e pessoas transitando o tempo todo. Foi nessa primeira semana que os diretores me chamaram e me disseram “Damião, você precisa seguir algumas regras para conviver com a gente” e me passaram uma lista enorme de restrições. Confesso que me lembro apenas de uma: eu devia ser legal com todos, ser gentil e agradável. E eu tentei, tentei muito mesmo, tanto que o diretor que me acolheu e eu nos tornamos grandes amigos e o que era para ser provisório, tornou-se permanente. Ele me propôs morar lá pelo tempo que eu quisesse.
 
O convite me tranquilizou, eu não tinha para onde ir. Já mencionei que eu era um sem teto? Imagine então o que é você ter a certeza de um lugar para viver, mesmo esse lugar sendo uma escola. Confesso que achei que seria fácil. Não foi, não mesmo. Começou com o professor de português... ele dizia publicamente que era contra a minha estadia ali, que eu não fazia bem aos estudantes, inclusive, que escola não era lugar para abrigar sem teto. Eu aguentei por muito tempo os insultos dele, não sei porque ele me odiava tanto. Não sei mesmo.
 
Senti por diversas vezes um desejo enorme de atacá-lo e fazê-lo engolir cada insulto. Não fiz. O diretor que me acolheu disse-me que tinha um plano para tirar o professor da escola. “Tenha calma, Damião, os dias desse professor estão contado”, achei merecido a punição que o esperava, que professorzinho nojento. Eu o odiava. E não demorou até que o plano dos diretores fosse colocado em ação. Mas foi um plano de uma imbecilidade sem tamanho, que ao invés de me ajudar só me atrapalhou. Não vou dizer como foi feito, apenas o que soube depois.
 
Era noite, o tal professor veio à Escola fazer não sei o que. Quando o vi entrar na escola, o sangue me subiu à cabeça. Como ele se atrevia a vir me incomodar, ele não trabalhava a noite. Então tive a triste ideia de confrontá-lo. Ele não recuou e eu vi naquele momento que íamos sair numa luta corporal. Graças ao segurança isso não aconteceu, ele ficou entre a gente e ficamos apenas nas ameaças. Não sei se aquele era o plano dos diretores para expulsar aquele professor desgraçado da escola ou se o que fiz acabou por fazer eles se equivocarem e agir com improviso.
 
No outro dia o barraco estava armado, o diretor acusou o professor de agressão e ameaça e jurou levá-lo a justiça, já tinha, inclusive, falado com uma delegada federal. A outra diretora, a fim de adiantar a expulsão do desgraçado, o maldito, infeliz professor de português o acusou de vandalismo. E eu, Damião, assistia a tudo, horrorizado. Achei desnecessário a forma como os diretores agiram, já não sabia se era para me ajudar mesmo, ou se eu era apenas um peão no jogo macabro daqueles que deveriam ser os educadores. A única coisa que sei é que o desencadear dos fatos não foi nada bom, para ninguém.
 
E advinha? Isso mesmo, ninguém ficou por mim. Todos os professores ficaram por seu colega. E meu amigo diretor me dizia “Calma, Damião, ninguém mexe contigo”. Acho que ele foi o único que não me ajudou, suas ações mais atrapalharam que ajudaram. Em meio à crise da acusação de vandalismo, esse meu amigo da direção teve a brilhante ideia de postar numa rede social que na escola os únicos que prestavam eram “Ele e eu, Damião”. Claro que os professores se sentiram ofendidos. Nessa altura da confusão, a inocência do professor sobre a acusação de vandalismo, já tinha ficado provada, e todos só queriam uma justificativa para a tão absurda postagem.
 
Não, não pense que eu não gostava do meu amigo diretor, mas eu não entendia como ele se afundava cada vez mais. Eu já não podia andar livremente, foi decidido que eu ficaria num quartinho por trás da cozinha até tudo ser resolvido. E o diretor, quando indagado sobre os motivos da postagem, não se explicou. Partiu para bater no professor de história num surto de ódio, não antes de xingar todos de burros e imbecis. É o meu fim, eu pensava. Aliás, já nem sabia se queria continuar vivendo ali. Do que adiantava ter um teto e não ter paz?
 
Em pouco mais de um mês vivendo no quartinho, eu já estava depressivo e muito magro. Vi-me envolvido num processo administrativo, que culminou na expulsão, não do maldito professor de português, mas do diretor que me acolheu. A diretora foi indiciada no mesmo processo a responder por crimes e eu... eu que não era ninguém, tive meu nome escrito dezenas de vezes num processo de mais de 160 páginas. Um sem teto, sem ambição nenhuma, que nunca havia cometido um crime na vida, era a peça principal em um processo carregado de crimes. Entende agora quando digo que eu sou o mais sensato para contar essa história?
 
Não tenho nenhuma pretensão que fiquem do meu lado ao ouvir minha versão desse conflito. Até porque eu não preciso mais de seres humanos dizendo que vão me ajudar. Preciso apenas voltar para rua, roer alguma osso, rolar na areia, ser livre. Continuo aqui, amarrado no quartinho por trás da cozinha. Isso não é vida. Eu nasci para ser livre. Aliás, todo cachorro devia ser livre. Não falei? Sim, eu sou um cachorro, e não é metáfora. Literalmente, eu sou um cachorro e não quero que me confunda com nenhum ser humano, principalmente os que me usaram dizendo me ajudar. Estou amarrado, sozinho... por acaso, isso é ajuda?
Nilson Rutizat
Enviado por Nilson Rutizat em 21/06/2021
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